sábado, 1 de dezembro de 2012

Al-magrib

Arabistas

Hoje de manhã, tomando banho, prometi a mim mesmo: não vou ser cafona. Nada de post de despedida. Nada de melancolia. Nada de poesia. Talvez um relato sóbrio, maduro e equilibrado sobre este que é o meu último dia no Marrocos.

Saí do banho, sequei o cabelo, fiz ioga e fui comprar badulaques com meu amigo cazaque Alisher. Cozinhamos macarrão com carne e arrumei minha mala. O quarto já está vazio, sem as coisas do meu roomate geórgio Levan, que a esta altura já está quase em sua terra natal.

Daí resolvi escolher algumas fotos para publicar no blog. Dei de cara com as fotos da tarde que passei na praia de Sable d'Or com a nova-iorquina Meredith. Lá se foi toda minha sobriedade.

Minha sobriedade ficou estirada nas formações rochosas de Sable d'Or, onde equilibramos cadeiras de plástico para fumar narguilé, ouvir o mar e conversar em árabe com um jovem desconhecido que se sentou com a gente e se pôs a tagarelar.

A maturidade eu larguei nos jardins da escola Qalam wa Lawh, onde passei minhas semanas marroquinas com a fuça enfiada em paradigmas verbais do árabe. Faala, faaala, afala, tafaala, iftaala, istafaala...

Deixei um pouquinho da dignidade dentro de um copo de chá de hortelã, pelando de tão quente, com as folhas boiando na água açucarada.

Ficou minha calma em uma Jerusalém de poliéster que visitei em Ouarzazate, no deserto, depois de cruzar as montanhas do Atlas. Mais ao leste, em Taza, me sentei no Portão do Vento e explorei o ventre da terra nas cavernas de Frouiato.

Caminhei pelo lado de fora de Fez, com o amigo Alex. Depois, caminhei pelo lado de dentro com as amigas Gabi e Aliki. Comprei um moletom tradicional pra me cobrir do frio que chegou de repente.

Mas eu já havia aberto mão de toda a serenidade quando conheci os amigos Alisher e Levan, com quem morei nos últimos meses, cozinhando variações do mesmo tema (macarrão, arroz, carne) e escalando ruínas marroquinas.

Antes deles, dividi o quarto com o holandês Martin, que me acompanhou na digressão espiritual de Alcácer Quibir, em uma das primeiras aventuras neste país em que me tornei um sebastianista irredutível.

Aprendi a conjugar verbo, mas aprendi também a saudar o Sol enquanto praticava ioga --larguei minha calma nas muralhas de Essaouira, enquanto me alongava ao som do canto dos Albatrozes.

Dei nome a gatos, corri na chuva e me esqueci de quase tudo.

Amanhã embarco para o Brasil. Deixei minha cidade natal, São Paulo, como aluno de árabe básico. Volto como estudante avançado --com mil outras expectativas e, falando em expectativa, na expectativa de me readaptar ao que já chamei de rotina.

Para isso, deixo outra rotina para trás.

Tento não dar vazão à tristeza de saber que vou descer, pela última vez, os degraus do meu prédio.

Mantenho a vista fixa atravessando a janela do quarto, enquanto escrevo este relato. Vejo o Sol se pôr, e me lembro que ele é a razão do título deste blog. Essa foi minha aventura pelas terras do Poente, a quem em árabe chamamos de al-Maghrib (ou Marrocos)

É triste que tenha acabado. Mas sei que, em algum lugar, o Sol vai se levantar de novo.

Vou estar por lá.

Meredith

Estudando no jardim

Chá de hortelã no café da Kasbah de Rabat

A falsa Jerusalém

Aventura na caverna

Do lado de fora de Fez

Amigos em Chella (Alisher, Levan)

Iogue em Essaouira

Martin e um amigo marroquino em Moulay Idriss

Arco triunfal em Volubilis

Olhar de gato

Na praia

domingo, 25 de novembro de 2012

Al-burj

Meditação diante da Torre de Hassan

Moro no Marrocos há três meses. A meia hora de caminhada do meu apartamento está a famosa Torre de Hassan, monumento do século 12. Vocês devem imaginar que eu passei dezenas de tardes por lá. Pois não -- visitei as ruínas pela primeira vez hoje.

É uma das ironias da vida cotidiana. O que está perto demais, ou garantido demais, em geral nos parece menos urgente. Mas percebi -- só tenho mais seis dias no país. Tem de ser hoje, tem de ser agora, se não for não vai ser.

Mas foi.

A Torre de Hassan é, aliás, em si um monumento às empreitadas atrasadas e não concluídas. Era para ser o maior minarete da maior mesquita do mundo. Mas, quando o sultão Yacub al-Mansur morreu em 1199, a construção foi interrompida -- nunca terminou de ser erguida.

Abu Yusuf Yacub al-Mansur é nome de rua aqui em Rabat. No Marrocos todo. Do que já se vê que é figura importante. Sultão da dinastia berbere almohada, foi um dos conquistadores do império marroquino

Da sua biografia, talvez o episódio mais notável seja sua determinação em reverter a expulsão dos árabes da Península Ibérica. Quando soube que a Europa reunia um dos maiores exércitos do período, com 300 mil homens, al-Mansur marchou contra o rei de Castilla Afonso 8º e o derrotou. Daí recebeu o título pelo qual ficou conhecido -- al-Mansur bi Allah. O vitorioso por Deus.

Vitorioso ou não, deixou como legado um minarete pela metade. Hoje, a torre é um monumento estranho, alaranjado, erguido entre pilastras em um canto de Rabat. Famílias passeiam pelos entornos, tomam chá de hortelã. Três turistas sem bom-senso -- a saber eu, Levan e Alisher -- escalam os pilares mais altos para tirar fotos. Depois, não sabem como descer.

Na véspera do fim da minha aventura, estou tranquilo em saber que não serei como a Torre de Hassan, um monumento melancólico pelo que poderia ter sido. Tenho certeza de que vivi esses dias como eles tinham de ser vividos, e volto para minha casa uma pessoa melhor. Melhor no árabe, é claro, mas também em jeitos que nem sei como explicar.

Difícil subir? Imaginem descer.

Alisher e as pilastras

Alisher

Levan

Shuflevan

sábado, 24 de novembro de 2012

Al-ukhra

Alisher and Levan

Amanhã começa a contagem regressiva. Último domingo no Marrocos. Última semana. Última segunda-feira, última terça-feira. Al-ukhra, as últimas. Os últimos chás de hortelã, os últimos cuscus. As últimas caminhadas de meia hora entre meu apartamento e minha sala de aula, andando em frente às embaixadas estrangeiras. Os últimos cantos de Allaaaaaaaaaaaaaaahu akbar, Deus é maior, vindos das mesquitas na vizinhança.

Hadhihi al-haiat.

Essa é a vida.

Wahakada al-dunya.

E o mundo é assim.

Já com esse clima de finalização, hoje fui passear em Chela, a fortaleza fenícia/romana/árabe, mais uma vez. Ao meu lado, Levan, o Geórgio; e Alisher, o Cazaque. Piadas em árabe, piadas em inglês e até piadas em russo (já aprendi a dizer "tchutchutchê", que aparentemente quer dizer "um pouco").

Ao Levan, ensinei a dizer "quando digo digo não digo Diogo, quando digo Diogo não digo digo".

O almoço foi no restaurante sírio, nosso favorito. Talvez nossa última refeição por lá? Talvez.

"Talvez" tanta coisa que nem sei mais. Quero voltar, quero ficar mais, quero ir para tantos outros lugares. Palas Atena ainda não retirou da minha frente a névoa que me impede de ver adiante, mas tenho todas as boas expectativas.

Levan Kiknadze

Alisher

Jogue uma moeda, faça um pedido

Abraçando um dragão

Levan quer escalar a fortaleza de Chela; sou educado, estou ajudando

Restaurante sírio: quibe, falafel, homus e suco de limão com hortelã

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Al-duyuf

Gabi serve o chá

É estranho quando a vida cotidiana se mistura com a excepcional.

Digo -- quando aquilo que tomamos por natural, como tomar chá com grandes amigos, acontece no mesmo tempo e espaço do que nós vemos como uma circunstância especial, como morar no Marrocos.

A explicação ainda está confusa. Perdoem, é o sono.

Vou tentar ser mais claro. Passei o final de semana com a Gabi e a Aliki, duas amigas essenciais com quem tomei muito café (e Tequila) em São Paulo nos últimos sete anos.

Fomos para Fez e Casablanca. Tenho poucas fotografias porque não tive tempo de apertar o disparador da câmera -- meus dedos estavam ocupados demais gesticulando, enquanto colocávamos a conversa de uma vida inteira, ou assim parecia, em dia.

No trem entre o aeroporto e Fez, depois de encontrá-las, me surpreendi achando o som do português estranho. Não falo minha língua há meses. Além disso, ela não parece combinar com esse país cheio de arabescos, de mosaicos, de chá de hortelã e especiarias empilhadas no suq.

Também mal me lembrava da dor nas cordas vocais que acompanha os bons amigos com quem a gente conversa tanto, e às vezes tão animados que gritamos, que mal percebe que está perdendo a voz.

Este post sonolento vai ignorar tudo o que fizemos. Não vou entrar em detalhes. Ofereceram 200 camelos pela Aliki, andamos embaixo do chuvisco na medina, arrastando o véu como pudemos. Nos perdemos no escuro, assim que anoiteceu; e, quando reencontramos o caminho, provavelmente já não éramos mais os mesmos.

Dois meses e meio depois, já não sou mais o mesmo.

Assim, esse post (sonolento, sim) vai concentrar-se no que importa: os amigos de que sinto tanta falta. Shukran jiddan, muito obrigado.

Na Mesquita Hassan II

Suricatos de jalaba

domingo, 11 de novembro de 2012

Said

Cenário para ioga

Não tem explicação. Acordei ontem, em Essaouira, e me dei conta de que sou um dos homens mais felizes do mundo.

Chamavam-lhe Mogador, nos tempos das grandes navegações. Os fenícios, quando estiveram por ali, chamaram o local de Ilhas Purpúreas, por conta de um molusco do qual extraíam o raro pigmento -- mais tarde, o responsável por tingir as togas dos senadores romanos.

Eu não sei do que vou chamar essa cidadezinha ao sul do Marrocos. Tenho tantas lembranças que mal sei por onde começar a nomeá-la. Na verdade, não sei nem como escrever esta nota neste diário confuso. Mas quem se importa?

Passei meus últimos dois dias fazendo ioga nas muralhas de Essaouira. Erguidas no século 18, elas são defendidas por canhões europeus -- cada um traz, em latim, a inscrição de seu artesão e do ano em que foi forjado em bronze.

O que mais? Nada. Eu viajei 10 horas de ônibus para isso. Meditar olhando o oceano Atlântico, enquanto uma cortina de albatrozes voa ao meu redor, atentos. Me lembro de Legolas em "O Senhor dos Anéis", e de como ele insistia que o canto das aves pode nos enfeitiçar. "Ai, ai, uma gaivota", e pronto, somos capazes de entrar em um navio e rumar ao oeste.

Eu sou capaz de tanta coisa. Deitado ao sol, com os pés esticados em direção às ilhas de Mogador, sou capaz de desistir de tudo. Sou capaz de voltar atrás do tempo e tomar as decisões certas. Sou capaz de esquecer o que sei e aprender o que não sei. Sou até capaz de ser feliz.

À tarde, me jogo em um canto e leio um romance do egípcio Naguib Mahfuz. Compro o jornal, tomo chá de hortelã, evito os vendedores de bugigangas.

À noite, compro uma casquinha de sorvete de melão e ando pela cidade, despreocupado. Das sombras, marroquinos vêm ao pé do meu ouvido e sussurram "hachiche?".

Mal sabem eles que meu alucinógeno é a viagem em si.

Ai, ai, um albatroz

Ai, ai, outro albatroz

Mogador emoldurada

Ai, ai, quanto albatroz

Canhões do século 18, em Mogador

Ioga

Em busca do bronzeado perdido

Porto de Mogador

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Hadiqat al-Qitat

Cafuné no Sharb

Moro em um condomínio, em Rabat. O bairro chama-se Mabella, e quando entro no táxi peço, por favor, que o motorista guie até o "bumba Shell" do baibro --o posto Shell.

São cerca de dez prédios de quatro andares, cada andar com dois apartamentos. Entre as construções, um gramado gostoso a que apelidei "Hadiqat al-Qitat". Em português, "Jardim do Gato".

Desde que cheguei, notei aos poucos que vive por aqui uma população felina de talvez vinte, trinta gatos. Não ao mesmo tempo --eles se revezam. Mas deve ser bem sabido, entre os gatinhos de Rabat, que há poucos lugares tão bons para os bichanos. Comida, sombra, segurança --e um brasileiro bobo encantado com todos eles.

Me transformei em uma espécie de Jane Goodall (vai, vocês se lembram de por quê fui à Tanzânia e escrevi este Na Sombra do Homem), conforme observo o comportamento dos gatos. Já os conheço por nome e por hábitos, e a cada dia estou mais apegado. Decidi, portanto, aos poucos apresentar meus bichanos aos raros leitores que tenho por aqui.

Um dos meus prediletos é o Sharb, vulgo Bigodinho ou Arrepiadinho. Ele tem os pelos mais longos do que o habitual, e está sempre descabelado. É assustado e curioso, e, quando mia, faz um som baixinho para não incomodar.

Outro dos diletos é o Kis, vulgo Saquinho. Ele passa o dia deitado em um saco de lixo, na frente do prédio vizinho. Mal se mexe. Me vê passar todo dia e me acompanha com a cabecinha preguiçosa. Ele me lembra meu Rajadinho, de quando eu tinha uns seis anos de idade, em uma daquelas lembranças que doem de tão lindas.

Há também a Umm Anaqat, a Mamãe Elegância. Ela anda de cabeça erguida, com a barriga encolhida, e quando se vira tem sempre um olhar de urgência. Mas, quando brinca com os filhotes, é uma doçura --pula em cima, morde, dá patada e depois lambe como quem pede desculpas por qualquer coisa.

Não posso me esquecer do Sa'iq, o Motorista. A maior decepção deste bichano é não ter as pernas longas o bastante para apertar o pedal do acelerador. Como protesto, ele dorme todos os dias em cima dos carros do estacionamento. Não sai dali nem para tomar banho.

O dia está frio, dentro e fora de mim, e não encontrei alguns dos meus preferidos. Não vi a Família Obama, e quando bati os olhos no Nis-Nis ele sumiu. Não tenho fotografias deles, por enquanto. Há também o Homem-Aranha, na escola. Todos eles terão sua hora e vez, em um post futuro.

Futuro.

Em árabe, falar de futuro sempre inclui expressões como "biyadilah". Nas mãos de Deus.

Meu futuro é um cenário enevoado. Acordei pensando nele e me afligi tanto que decidi tirar fotos de gatos.

Perdoem a eventual futilidade.

Sharb

Sharb

Kis

Umm Anaqat e seu filhote

Sa'iq

sábado, 3 de novembro de 2012

Ta'aban

Pulo

Essa semana que passou foi exaustiva. Prova na quinta-feira, apresentação no dia seguinte sobre Inês de Castro, em árabe, e finalmente a formatura -- e fui aprovado, com nota 98%, para o nível Intermediário II.

A exaustão física e mental vem acompanhada da espiritual. Ontem, depois da bateria de atividades na escola, vim pra casa e me deitei no sofá. Queria estudar, queria telefonar para um amigo, queria fazer mil coisas. Não fiz nada. Estava ta'aban, cansado.

Hoje, para "tirar a nhaca", como diria minha querida avó Malvina (que saudades!), resolvi viajar. Acordei cedo e rumei para Asilah, quatro horas de trem ao norte, na costa atlântica. A história é um pouco repetitiva, para quem tem acompanhado o blog: colônia fenícia, território espanhol, muralhas portuguesas, protetorado espanhol, controle marroquino...

De incomum, a cidade tem murais pintados em suas paredes brancas e azuis. Um deles, com um verso de Fernando Pessoa, me encantou em especial ("Sou do tamanho do que vejo").

De resto, o dia não teve nada de excepcional. Sentado nas muralhas, andando pelas pedras da praia, olhando o mar, pensando no tamanho da natureza -- o céu cheio de nuvens parecia uma visão de Deus.

Estou sensível nestes dias. Talvez seja a solidão, depois de dois meses sem cafuné. Mas não posso dizer que estou triste. Pode ser também o sentimento lusitano, por eu ter passado a semana pensando em Inês de Castro, aquela que foi rainha depois de morta, aquela que foi sem nunca ter sido.

Ao contrário do árabe, o português é rico em modos e tempos verbais. Por conta disso, fico pensando -- o que é que eu sou sem ser? O que vou ser sem deixar de ter sido? O que seria se não fosse? O que foi para que seja?

Meditação

E não do tamanho da minha altura

Futebol na medina

Mural em Asilah

Fora de foco

Mirante em Asilah

Três planos: cidade, praia, gato

Allah

Náufrago

Cidade